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Fabiana

1996

Foto: Reprodução do arquivo pessoal de Ivanise Esperidião.

FABIANA
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“Mãezinha, você já tomou café?”, Fabiana perguntou à mãe na manhã do dia 23 de dezembro de 1996. Ivanise Esperidião da Silva limpava a casa quando recebeu a pergunta seguida de um beijo e um abraço da filha. Mesmo já tendo tomado café, aceitou o convite. Ivanise se refere ao episódio como o último ato de carinho de Fabiana antes do seu desaparecimento. “Eu acordei no dia que ela desapareceu muito triste, com aquele aperto no coração e uma vontade de chorar sem saber porque eu estava sentindo aquilo”, ela relata. 

​Como a maioria das famílias, a de Ivanise se preparava para o Natal e para o aniversário de Fabiana, que completaria 14 anos em poucos dias. Ivanise a descreve como uma menina inteligente e muito carinhosa. Quando Fabiana tinha poucos meses de vida, seu berço vivia de canto, rejeitado pela bebê que preferia dormir na cama, próxima da mãe. Fagna, a irmã mais nova, costumava puxar o saco da irmã pelo seu jeito meloso, mas a mais velha não ligava. 

Naquela noite de quinta-feira, uma chuva forte caía sobre São Paulo. Ivanise chegou do trabalho às 20h50. menos de uma hora depois de Fabiana ter saído para a casa de uma amiga, segundo contou sua irmã. Ivanise esperou a chuva enfraquecer para buscar a filha na casa que ficava a poucos metros de distância da sua. Quando chegou lá, porém, se deparou com a notícia de que a filha já tinha ido embora. 

Em pouco tempo, os vizinhos se uniram para procurar a menina. Desesperada, Ivanise buscou pela filha até as 2 horas da manhã, quando decidiu pedir a ajuda da polícia. O primeiro delegado que a atendeu recomendou que ela esperasse 24 horas para realizar o boletim de ocorrência. Ao ser questionado sobre essa decisão, o delegado disse à Ivanise que a filha deveria estar com algum namoradinho e que adolescentes sempre saem sem avisar os pais para ir para a balada. “Ele disse pra eu voltar pra casa, que até o dia amanhecer ela já teria voltado. Já se passaram 24 anos e eu estou esperando esse dia chegar”, conta Ivanise. 

Quando Fabiana desapareceu, a lei 11.259, que determina a investigação imediata em caso de desaparecimento de crianças e adolescentes ainda não existia. Ela foi criada somente em 30 de dezembro de 2005. Antes disso, a espera de 24 a 48 horas para o começo das buscas era comum, o que diminuía as chances de encontrar pistas que determinassem o paradeiro da vítima. Apesar da mudança, a lei ainda não favorece adultos e, em alguns casos, a único procedimento é o boletim de ocorrência, sem investigação. 

“Eu voltei no dia seguinte e tinha uma delegada ainda mais arrogante que disse que eu tinha que esperar 24 horas, e eu disse que já tinha ouvido esse papo”. Mesmo com o boletim feito após muita insistência, as buscas ainda demoraram para se iniciar. Uma sucessão de condutas demoradas acabaram dificultando as buscas por Fabiana e podem ter interferido drasticamente nas chances de encontrá-la. “A delegacia é o último lugar que você vai. Quando você vai lá, você já esgotou as suas buscas. Ao invés de te acolherem de forma humanizada, eles te tratam de forma desrespeitosa, discriminatória. Se é menino, ou está envolvido com as drogas ou foi pra balada. Se é adulto, solteiro, está envolvido com o crime. Se é casado, foi embora com a amante. Então para cada caso, para cada idade, eles já tem opinião formada”.

Ivanise começou então uma rotina exaustiva de busca incessante por três meses. De dia, ela visitava o IML e procurava o rosto da filha nas fotos. Hoje em dia o IML possui outro sistema de identificação, mas na época, um álbum de fotos era entregue à Ivanise para que ela pudesse reconhecer se a filha estava naquelas fotos. Caso contrário, ela precisava voltar novamente em dois dias, pois o IML só ficava com o corpo durante 72 horas. Após esse período, o indivíduo era encaminhado para ser enterrado sem identificação. “Aquele cheiro do IML é uma coisa horrenda. Eu vi mulheres e meninas assassinadas das formas mais cruéis possíveis”.

Durante a noite, Ivanise ia às ruas e frequentava os bairros da Sé, Anhangabaú, Cracolândia e outras áreas do centro de São Paulo em busca da filha. “Eu amanhecia o dia na rua, isso foi me degradando fisicamente e psicologicamente, até que um dia eu não consegui ficar mais de pé. Fiquei 57 dias assim, até que meu organismo não conseguiu mais”. Desidratada e com um grau de desnutrição grande, Ivanise foi parar no hospital. “Eu queria ficar acordada. Eu só tomava café preto e fumava um cigarro atrás do outro, se eu tentava comer eu vomitava sem ter nada no estômago. Eu pensava ‘como eu vou comer sem saber se minha filha está comendo?’”. 

Ivanise evitava dormir com medo de que o telefone ou a campainha tocasse e ela não ouvisse. “Um dia eu pedi pra deus, falei ‘senhor, eu não aguento mais. Faz uma troca comigo. Leva-me e traz a minha filha’. Falei com revolta, com raiva, mas na mesma hora eu senti um arrependimento muito grande e pedi que deus me mostrasse uma forma, seja ela qual fosse, de eu poder esperar pela minha filha até a hora que ele achasse que eu estivesse preparada para encontrar ela”. 

Ciente da situação, uma amiga de Ivanise contou para ela sobre uma instituição no Rio de Janeiro que ajudava mães de filhos desaparecidos, as Mães de Cinelândia. Algumas semanas depois de cadastrar sua filha, Ivanise foi convidada para a gravação de um episódio especial da novela Explode Coração, da Globo, que recrutou diversas famílias com entes desaparecidos para divulgar a causa em rede nacional. “Eu gravei meu depoimento e pensei ‘eu vou encontrar minha filha porque meu depoimento vai passar em uma novela da Globo em um horário nobre’. Eu voltei com uma expectativa muito grande”. 

As gravações aconteceram em um sábado e a exibição ocorreu na quinta-feira da semana seguinte. No dia seguinte da transmissão, Ivanise foi procurada por 2 jornalistas e aproveitou a oportunidade para desabafar sobre a negligência policial que vivenciava. “Contei sobre aqueles 3 meses de busca solitária que eu investigava o desaparecimento da minha filha e passava para os investigadores. A polícia não tinha feito absolutamente nada. E, no último parágrafo, falei que se alguém tivesse passando pela mesma situação poderia me ligar e coloquei o telefone à disposição. Não sei se foi a melhor ou a pior coisa que eu fiz, só sei que no dia seguinte meu telefone começou a tocar por volta das 8 horas da manhã e ele não parou mais até hoje”. 

 

 

Diversos órgãos de imprensa cobriram o evento, que reuniu mais de 100 pessoas e passou a se referir ao grupo como Mães da Sé. Nos meses seguintes, algumas das famílias envolvidas conseguiram encontrar os entes desaparecidos, o que alimentou a expectativa de Ivanise. Ela encabeçou a frente do projeto Mães da Sé, que se tornou uma organização renomada que ajuda família de pessoas desaparecidas e hoje luta contra a negligência desses casos. “O desaparecimento é uma causa invisível aos olhos da sociedade, invisível aos olhos do poder público, que não faz absolutamente nada. O próprio Estado acaba produzindo o desaparecimento através dos seus agentes policiais”. 

Ivanise lida com diversas famílias e vê de perto a situação de jovens desaparecidos após encontros com a polícia. “Em muitos dos casos em que a vítima foi abordada pela última vez por policiais militares, ela é encontrada morta, principalmente se ela tiver tatuagem e for negra. Lei é o que nós mais temos. Nós temos a lei de busca imediata, que é voltada só para criança e adolescente. Ela existe há 14 anos. Agora me pergunta se a lei é cumprida. Não é. Você não tem que esperar tempo algum para ir à delegacia registrar a ocorrência do desaparecimento”, afirma. 

Por trás do desaparecimento pode existir diversos crimes, entre eles de tráfico de pessoas, que é o 3º maior crime no mundo e só perde para o tráfico de drogas e armas. 70% das pessoas traficadas no mundo são mulheres e crianças. “Além do tráfico de pessoas, existe o tráfico de órgãos, crimes de ocultação de cadáver. exploração sexual de mulheres e crianças. Também existe a exploração de travestis, que vêm principalmente dos estados do Pará e da Amazônia para São Paulo e são enganados com a promessa de ganhar muito dinheiro fazendo programa e conseguir fazer a mudança física. Eles vivem em cárcere, moram em casas onde são espancados. E a família fica lá, procurando por eles como desaparecidos. Existe uma série de crimes que acontecem por trás do desaparecimento”. 

“Eu peguei 14 anos de investigação do desaparecimento da minha filha. E desses 14 anos não tinha 300 páginas de investigação. Todos os procedimentos que eles fizeram, eu fiz e continuo fazendo. Os procedimentos tinham 3 vias e eles sequer me chamaram pra dizer "olha, dona Ivanise, a gente fez isso, isso e isso. Em 24 anos de desaparecimento da minha filha, eu fui chamada naquela delegacia 3 vezes. Eu estou me preparando psicologicamente pra ir lá fazer 2 coisas: levar a foto dela para fazer a progressão de idade e pedir uma cópia da investigação dela”. 

Ivanise conta que o sonho da filha era trabalhar para ter as próprias coisas. Na época, a idade legal para poder trabalhar era a partir dos 14 anos. Sendo assim, o plano de Ivanise era tirar todos os documentos da filha no aniversário, que estava próximo. “Se eu quiser uma certidão de óbito da minha filha hoje, o Estado me dá, porque para o estado a minha filha não existe mais. Passou de 20 anos é considerado morto para o Estado. Eu posso pegar uma certidão de óbito, mas eu não vou fazer isso, porque se minha filha está morta, cadê o corpo? Cadê os restos mortais dela? O Estado me deve essa satisfação, me deve essa resposta”. 

Com exceção de sua certidão de nascimento, nenhum outro documento foi emitido no nome de Fabiana. “Se a minha filha foi assassinada, eu nunca vou saber, porque ela não tinha registro. A gente acha que a desgraça só bate na porta dos outros, a gente nunca acha que a desgraça bate na nossa porta”, lamenta a mãe. “Mas eu continuo esperando. Eu tenho certeza que a minha filha tá em algum lugar desse planeta e a hora que eu menos esperar, deus vai trazer minha filha de volta. O meu coração de mãe me diz que a minha filha está bem”. 

A falta de amparo das instituições

O nascimento do Mães da Sé

Os telefonemas eram de pais, mães, irmãos, filhos e parentes que tinham entes desaparecidos. Ivanise começou a receber também muitas ligações de rádios, produções de TV, revistas e outros jornais interessados em sua história. As pessoas envolvidas na causa perguntavam sobre a possibilidade de uma reunião e, inspirada pelas Mães da Cinelândia, que se reuniam nas escadarias da Cinelândia, ela marcou o encontro nas escadarias da Praça da Sé, o marco inicial de São Paulo e o principal palco de protestos, manifestações e reivindicações da sociedade nos anos 90. 

Reunião da ONG na escadaria da igreja da Sé. Foto: Ivanise Esperidião

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