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Um sistema falho

Talvez a maioria das pessoas nem perceba, mas o desaparecimento é um fenômeno que cruza o dia a dia de todo brasileiro. Antecessor a um crime, ele estampa os noticiários populares, que exibem diariamente imagens de pessoas procuradas pelas famílias até que os rostos comecem a se mesclar num borrão de incertezas. Só em 2019, foram 79.275 casos registrados de desaparecimento no país, segundo publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

As 39 mil pessoas dadas como localizadas pela publicação do mesmo ano podem sequer ter sido de casos registrados em 2019, mas supondo que fossem, ainda restariam 40 mil famílias desamparadas em busca da localização de seus familiares, sem contar aqueles que buscam há muito mais tempo, como é o caso de Lucineide e Ivanise.

Para entender o motivo dos números serem tão alarmantes, devemos analisar todo o processo de um caso de desaparecimento, desde antes mesmo do desaparecimento. Em muitos casos, a falta de informações que alimentam os bancos de dados pode prejudicar as investigações. O delegado da Polícia Federal e professor Adriano Barbosa atenta que os responsáveis por menores de idade devem se atentar à isso e emitir o RG de crianças o quanto antes. "Se tira inicialmente ainda na primeira infância e quando entra na adolescência, a partir de 12 anos", ele recomenda.

O delegado conta que é importante existir dados que registrem a existência e as características do indivíduo. Registro escolar, matrícula no sistema de ensino, carteira de vacina, tudo isso pode ser convertido em dados. Alguém que não possua esses registros dificilmente é localizado. "Essa pessoa é um fantasma para o estado, ou então ela existe mas já com outro nome. Já não como pessoa desaparecida, mas uma pessoa que tem CPF, tem RG, mas sem nenhuma relação com a sua família de origem".

Quando a família nota o desaparecimento de um parente e prossegue com a etapa recomendada, o registro do boletim de ocorrência, ela encontra o seu primeiro desafio: o descumprimento da Lei 11.259, que determina a investigação imediata em caso de desaparecimento de crianças e adolescentes, e da Lei 13.812, que define como pessoa desaparecida “todo ser humano cujo paradeiro é desconhecido, não importando a causa de seu desaparecimento".

Em todos os casos abordados por essa reportagem, as famílias relataram problemas ao registrar o boletim de ocorrência nas delegacias. Os relatos se repetem: são autoridades que presumem o paradeiro da vítima e solicitam a espera de 24 horas para realizar o registro. Quando finalmente o registro é efetivado, as investigações também não acontecem de imediato. Esse procedimento não só desobedece a lei, mas prejudica as horas mais importantes de uma apuração.

"A chance de investigar e de conseguir comprovar as coisas vai ficando cada vez menor. Quanto mais tempo passa, pior fica para as investigações", comenta o advogado Wesley Portugal. Por essa razão, as buscas iniciais costumam ser feitas por amigos e família das vítimas em locais próximos e que podem ter sido destino da vítima, mas a investigação da família não substituia a ação profissional e a negligência policial deve ser denunciada.

"Há um caminho interno da própria polícia, através da chefia daquela autoridade pelo canal da corregedoria, e há o caminho sempre do Ministério Público. Por determinação constitucional, o Ministério Público é o órgão de controle externo das polícias, tanto as polícias civis quantas militares", afirma o Adriano, que já atuou como Corregedor do Estado de São Paulo e descreve o processo interno de controle como efetivo. "Todo órgão de monopólio de uso de força necessita de controle".

As etapa de investigações policiais em casos de desaparecidos passam por uma série de falhas sistemáticas que transcendem o poder individual. Somente nos dados apresentados do número de desaparecidos e localizados em 2019 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 9 dos 27 estados (incluindo Distrito Federal) não notificaram o número de reaparecidos. Em 2017 faltavam informações de 13 estados e a pesquisa sequer trazia número de pessoas encontradas.

Essa subnotificação reflete um problema profundo sobre o tema: a falta de integração de dados e comunicação entre instituições. "Não existe geração espontânea de dado", alega o delegado Adriano. Ele conta que, por isso, o Instituto Nacional de Identificação da Polícia Federal criou em 2016 o CADÊ (Cadastro Biométrico de Pessoas Desaparecidas). Nele, é o usado o sistema AFIS (sigla em inglês para Sistema Automatizado de Identificação de Impressões Digitais), que armazena dados biométricos  e atende todo o território nacional.

No entanto, há ressalvas sobre o cadastro. Ele é relativamente novo e ainda não é tão difundido, além disso é preciso que os Estados interessados façam sua adesão ao CADÊ por requerimento no Instituto. "Eu tenho até dúvida se as polícias civis sabem disso nas delegacias. Talvez uma delegacia especializada em desaparecidos saiba, como tem em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas e aquele DP lá do interior do Estado, no interior do Nordeste?", indaga o delegado.

O cadastro também precisa de uma integração de dados que vai além dos dados papiloscópicos, segundo o delegado. "Às vezes a pessoa passa a vida inteira e não tem um problema de polícia, mas ela procura o sistema de saúde em algum momento da vida, ela procura o sistema de assistência social, previdência social... E esses bancos de dados precisam conversar, porque senão você só tem uma face da verdade".

Antes do surgimento do CADÊ, o Ministério Público já atuava com dados catalogados pelo Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID), que surgiu em 2012 no Rio de Janeiro. "O colega Dr. Pedro Mourão resolveu catalogar os dados biométricos, todos os dados físicos pessoas, embora não identificadas por nome, e resolveu colocar esses dados em ordem para que pudessem fazer uma parceria com o Ministério Público", conta a coordenadora do PLID em São Paulo e promotora de justiça Eliana Vendramini.

O programa tem o objetivo de ampliar os canais de buscas à pessoas desaparecidas e trabalha para que seja implementado em todos os Ministérios Públicos Estaduais do país. Ele atua com um sistema informatizado, o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (SINALID). No site do Ministério Público, o programa deixa claro que sua atuação não substitui a investigação da Polícia Civil, mas acompanha os casos de forma complementar.

Além disso, o PLID promove a realização de trabalhos estatísticos que permitem uma análise social dos casos. Essa avaliação é importante para basear importantes políticas públicas de enfrentamento ao desaparecimento. "Às vezes falta compreensão social mesmo de que essas pessoas não criaram um problema, mas estão num problema grave de política pública", afirma a promotora.

A falta de integração de dados foi averiguada em um artigo publicado em 2016 pela promotora Eliana Vendramini e a advogada Patrícia Visnardi denunciando uma grave falha sistemática: pessoas registradas como desaparecidas estavam sendo enterradas como "indigente" sem que suas famílias fossem notificadas. Descobriu-se vítimas enterradas que eram procuradas há mais de 14 anos, mas que haviam sido encontradas dias após o desaparecimento. O fenômeno foi nomeado como "redesaparecimento".

Eliana conta que desde que assumiu a coordenadoria do programa, acolheu a importante tarefa de compreender o assunto: "Fui estudar a temática do desaparecimento aqui em São Paulo, vindo à minha cabeça dois grandes blocos: os desaparecidos potencialmente mortos, embora a gente nunca queira chegar nessa solução, ela existe, e os potencialmente vivos".

A partir dessa colocação, estudou-se as instituições prestadoras de serviços que podem estar relacionados à localização de uma pessoa, como hospitais, Instituto Médico Legal (IML), que realiza autópsias em corpos não identificados e de morte violenta, e o Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), que realiza autópsias em corpos identificados e de morte natural. A publicação relata que as 72 unidades do IML no Estado de São Paulo não possuiam um cadastro fotográfico digital e unificado, causando falhas no atendimento.

O Serviço de Verificação de Óbitos é pouco conhecido em relação ao IML, mas ambos serviços respondem ao comando da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e o SVO é administrado pelo Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP. Os corpos autopsiados pelo SVO, por serem resultantes de mortes naturais e não terem lesão, são inumados ou encaminhados para serem usados a fins de estudo e pesquisa pela faculdade.

O grande problema foi percebido quando o Ministério Público fez o requerimento da lista de identificação dos corpos autopsiados pelos dois serviços. Enquanto o IML sequer mantinha uma listagem oficial dos corpos, a SVO possuía uma lista mas afirmou que não entrava em contato com as famílias para informar o paradeiro e o destino dos corpos. Essa descoberta resultou na instauração de um Inquérito Civil na Promotoria de Direitos Humanos da Capital.

A prática é omissiva, ilícita e uma violação massiva dos direitos humanos. Segundo a Lei 8.501 Art. 3° é destinado para estudo o cadáver sem documentação. Quando identificado mas inexistem informações relativas a endereços de parentes ou responsáveis, a autoridade competente publica a notícia do falecimento nos principais jornais da cidade, por pelo menos dez dias.

Para fins de reconhecimento, a Lei prevê também que a autoridade ou instituição responsável mantenha os dados relativos às características gerais, identificação, fotos do corpo, ficha datiloscópica, resultado da necropsia, caso efetuada, e outros dados e documentos julgados pertinentes.

Esse aglomerado de práticas danosas, tanto de desumanização no tratamento para com a família de uma pessoa que acabou de desaparecer, quanto o tratamento de um corpo que possui um registro oficial de desaparecimento ignorado por instituições e até mesmo a falta de integração básicas de dados entre todas as áreas que geram arquivos de sua população é causado por uma fiscalização branda dos órgãos públicos que lidam com a vida humana.

É preciso entender que o desaparecimento é um fenômeno que está diretamente ligado a outros problemas da sociedade. Para Eliana, “é um tema cheio de estigmas em função dos desaparecidos da ditadura e da má compreensão histórica, e que caminha hoje para um problema grave que é o desaparecimento forçado prioritariamente da população periférica e vulnerabilizada economicamente e socialmente”.

Falta integração nos bancos de dados

O processo de desaparecimento

O redesaparecimento e os direitos humanos

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