1996

Felipe
2008

Foto: Reprodução do arquivo pessoal da família.
Era uma segunda-feira, dia 3 de novembro de 2008, quando Felipe Damasceno Machado saiu de casa para ir à casa de um colega na Vila Natal, zona sul de São Paulo. O adolescente, na época com 17 anos, avisou à mãe antes de sair com sua moto. Lucineide da Silva Damasceno estava acostumada às saídas do filho e tinha um relacionamento de confiança, apenas pediu para que ele não demorasse. Felipe jamais voltou e até hoje sua localização segue indeterminada.
A família já tinha dado falta de Felipe e havia começado uma busca por hospitais, delegacias e presídios quando soube que Vinícius, o amigo que Felipe havia ido visitar, também havia desaparecido. “Aí a gente pirou, surtou. Duas pessoas sumidas? Eu achava que podia ter sido algum acidente de moto”, conta Lucineide.
Um grande grupo de motoqueiros se reuniu para ajudar nas buscas e assim surgiu a primeira pista.
“Motoqueiro você sabe, é muito unido, principalmente na madrugada. Se tem um parado, eles vão lá ver o que tá acontecendo. Um rapaz disse que viu uma abordagem da GCM (Guarda Civil Metropolitana) com um rapaz com as características todas do Felipe. A roupa, a moto... Porém o rapaz parou, perguntou se estava tudo bem e, segundo ele, os policiais falaram ‘é só uma abordagem comum, normal’, aí ele foi embora. Ele não pegou o número da viatura, ele não pegou o número da placa de moto. Mas se a moto estava parada do lado, onde que é estava esse tal de Vinícius que desapareceu também?”
“Partimos para delegacia. Foi difícil porque as delegacias há 12 anos atrás não tinham a inteligência que tem hoje, a gente sabe que um boletim de ocorrência se faz na hora que a pessoa desaparece. Quando ele desapareceu, tinha aquela história ‘espera 24 horas porque pode estar na casa de um amigo, da namorada’, e eu não consegui fazer o boletim rápido”. Em 2008, a lei 11.259 já estava em vigor. Mesmo assim, a prática de se negar a realizar o boletim é um relatado comumente pelas famílias que possuem entes desaparecidos. A prática, no entanto, configura crime de prevaricação, quando o funcionário público não cumpre com suas funções, e deve ser denunciada.
Além disso, Lucineide relata que houve abuso de poder. “Houve um bate-boca e eles não quiseram me deixar sair da delegacia, me xingaram de vagabunda, de um monte de coisa”. A delegacia também negou a abordagem da GCM. “A gente levou o caso para corregedoria, está até hoje em sigilo. Segundo o pessoal da delegacia que foi chamado, só prestam depoimento em juízo, do outro lado eu não tenho provas concretas. Como é que a gente vai provar que houve essa abordagem? Teria que ter pelo menos o número da viatura, qualquer coisa”.
Lucineide levou o caso para o DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa) e agora o ele está sob os cuidados do Ministério Público. “Ao invés do DHPP ligar para dar alguma informação, eles ligam para saber se eu tenho alguma novidade. E não é assim só com Felipe não, são com vários”. Para ela, a possibilidade de arquivarem o caso por falta de provas é revoltante. “Se fechar [o caso] eu dou um jeito de abrir. Como é que vai arquivar um caso sem resposta? Meu filho não era, mas mesmo que ele fosse um bandido, um traficante, que ele fosse o que fosse, ele tem o direito dele a ser cumprido e o estado tem o direito de cobrar dele o que ele fez de errado, não de sumir com ele”.
Assim como o caso de Carlos Eduardo, baseado em relatos das testemunhas, é possível que o desaparecimento de Felipe tenha o envolvimento de autoridades policiais. A ideia assusta Lucineide, mas ela não descarta a possibilidade. “Teve uma moça no DHPP que falou para mim com todas as letras que quando a polícia quer, ela mata. Amarra uma pedra no pescoço, joga no primeiro riacho que tiver e ninguém mais acha. São coisas que você acha um absurdo de ouvir, e ao mesmo tempo você acha um absurdo que aquilo seja real. É real”.
Ela conta que levou o caso para a Corregedoria e que a testemunha que presenciou a abordagem da Guarda Municipal Metropolitana foi ouvida e não mudou seu depoimento. Além da moto, único pertence achado na investigação, a possibilidade de que a abordagem tenha acontecido com Felipe é a maior pista do caso. “Se a GCM não tem envolvimento, por que houve omissão? Se houve omissão, por que não dizem quem foi a pessoa que eles abordaram? Se não aconteceu isso ou se o menino que foi visto não era o Felipe, eu não sei, só sei que a moto foi encontrada, e ele? Está onde?”
Desde então, a busca de Lucineide é contínua. Ela seguiu procurando o filho pelas ruas de São Paulo e entrando em contato com locais que poderiam ter informações, como hospitais, presídios e IML. “Na época me tornei uma andarilha de rua. Procurar pessoas embaixo de viaduto não é brincadeira, é muita gente. Ou você se joga na rua para procurar, ou você não tem como encontrar. Você encontra muitos moradores de rua em situação absurda”.
Há alguns anos, Lucineide recebeu uma informação de que seu filho podia estar vivendo como andarilho. A possibilidade de encontrá-lo deu à ela esperança e a motivou a buscar ativamente pelo filho. “Fiquei muito tempo na rua, no centro da cidade. Passamos uma bela temporada e nada. As pessoas diziam que viam uma pessoa muito parecida com ele, que andava como se tivesse sem memória. Não lembrava do nome, não lembrava onde morava, não sabia se tinha família, como se estivesse desnorteado. Muita gente disse que era ele, outros diziam que era parecido. Eu não consegui chegar a encontrar esse rapaz”.
A família continuou procurando por Felipe mesmo quando as possibilidades pareciam esgotar-se, mas suas vidas não deixaram de seguir em frente. Lucineide conta que seus outros dois filhos, Amanda de 31 anos e Anderson de 18 anos, foram profundamente afetados pela ausência do irmão, principalmente Amanda, que era mais próxima de Felipe. Os dois nunca se desgrudavam e tinham um companheirismo muito grande. “Onde o Felipe estava, a Amanda estava. Na época ela ficou muito mal, até hoje não consegue falar do assunto, ela só chora".
Já o caçula era muito novo quando o irmão desapareceu, mas Lucineide lembra de vê-lo constantemente triste. Hoje, o que mais a deixa inconsolável é ele dizer que não consegue se lembrar de Felipe. "Ele fala ‘mãe, não lembro mais do Felipe, lembro de algumas brincadeiras, algumas coisas, mas não lembro mais dele’”, conta com pesar.
A relação da família sempre foi de muito afeto. Lucineide relata com carinho as paixões de Felipe por motos e sua fama entre as meninas. “Nós não tínhamos problemas com nada, o problema maior eram as namoradas no portão enchendo meu saco. Era demais", ela ri com a lembrança. "A gente sempre foi muito unido". Felipe amava motos e possuía uma oficina ao lado de casa onde arrumava pneu, vendia peças para motos e bicicletas. "Saia de casa e ia para lá trabalhar. O mundo dele era aqui, eu pegava no pé para não sair para fora”.
Algum tempo depois do desaparecimento de Felipe, o advogado de Lucineide a apresentou à ONG Mães da Sé. “Eu cheguei lá e eu vi aquela situação, aquele monte de arquivo, de caixa, aquela pessoazinha pequenininha lá longe”, ela relembra com humor a primeira vez que encontrou Ivanise. “Ela falou que ela estava há 12 anos procurando a filha dela e eu entrei em choque. ‘E você vai me ajudar como?’. Até hoje a gente dá risada quando eu lembro disso. Ela disse ‘não sei, a gente vai ter que procurar’, aí eu falei ‘meu deus, a mulher não conseguiu achar a filha dela vai achar o meu?’ Eu entrei em pânico”.
Alguns meses depois, Lucineide passou a participar dos encontros propostos pela ONG. “Fui participando, conhecendo outras mães, fui entendendo o que é o desaparecimento. A gente começou uma tentando ajudar a outra, se apoiando, e assim nós estamos até hoje. Ela é uma irmã que não tenho, porque estamos sempre juntas, sempre conversando, tendo ideias, fazendo divulgação de cartazes, televisão... Para mim faz parte da minha família, algumas mães também, a gente tem um convívio, se fala uma, duas vezes por semana. Virou isso a minha vida, uma outra família nada a ver com minha”.
Para ela, o trabalho desenvolvido pelo Mães da Sé é primordial para que as políticas de enfrentamento ao desaparecimento no Brasil sejam cada vez mais aprimoradas. “A ONG tem uma importância muito grande porque a divulgação é a chave. É o único espaço que a gente tem. A gente já encontrou bastante gente com essas divulgações, mas ainda não chegou a minha vez, nem a da Ivanise, nem a de outras”. Enquanto sua vez não chega, Lucineide se recusa a abandonar a esperança. Ela se apega ao pertences antigos de Felipe e guarda com amor tudo o que a faz lembrar dele. "A roupa dele continua do mesmo jeito, moro na mesma casa. Para eu sair, só se encontrar ele. Aí eu penso em mudar. Aqui é o lugar que eu acho que ele pode voltar”.
Uma esperança
Falta de apuração e informações

Dois meses depois do desaparecimento, a moto de Felipe foi encontrada. “Eu fui informada por um presídio de Diadema que a moto estava no pátio da delegacia onde eu fiz o boletim de ocorrência. Não consegui ver essa moto até hoje, não foi feita a perícia, não foi feito nada, sabe? Tudo em aberto”. Lucineide reclama da falta de apuração sobre as poucas pistas do caso de Felipe. “Por que a moto foi encontrada e eles não avisaram, não fizeram nada? Teria que ter feito uma perícia, ter dito onde foi encontrada essa moto para que a gente pudesse fazer uma investigação maior, ver se o corpo não estaria por ali, pelas redondezas. Tem alguma coisa errada, deus ajude que não seja deles terem matado meu filho”.